A maldição do amianto

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Se depender das vítimas do amianto, 2014 poderá ser o pior ano da vida do bilionário suíço Stephan Schmidheiny. Elas preparam-se para abrir mais uma frente na luta pelo banimento da fibra cancerígena. Desta vez, miram em algo talvez mais valioso do que a própria fortuna do empresário cuja família fundou a Eternit suíça. Durante o século 20, o grupo industrial plantou fábricas pelo mundo e semeou com elas doenças fatais como asbestose (conhecida como “pulmão de pedra”) e mesotelioma (o chamado “câncer do amianto”). Agora, o alvo de doentes e familiares é o patrimônio imaterial ao qual o suíço dedicou muito dinheiro, batalhões de marqueteiros e os melhores esforços: sua biografia.

No Brasil, os advogados da Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (ABREA) pretendem cassar a prestigiosa Ordem do Cruzeiro do Sul, concedida ao suíço pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso em 1996. A ofensiva faz parte de uma estratégia internacional das vítimas, liderada pela Itália. Desde o ano passado, a organização italiana AFEVA (Associação de Familiares e Vítimas do Amianto) pressiona a Universidade de Yale, nos Estados Unidos, para revogar o título de doutor “honoris causa” em letras humanas concedido a Schmidheiny também em 1996. Na Venezuela e na Costa Rica, iniciativas semelhantes começam a ser articuladas para pressionar instituições que o premiaram. A meta é apagar um a um os títulos e prêmios exibidos pelo bilionário em sua biografia oficial. Para cada uma das honrarias há um grupo de vítimas se organizando para pressionar pela sua anulação. “Nós não estamos interessados na destruição de um ser humano, mas na busca da verdade. E a verdade é que não há ‘honra’ na conduta do senhor Schmidheiny”, escreveu Bruno Pesce, coordenador da AFEVA, à direção da Universidade de Yale.

Stephan Schmidheiny é um personagem trágico do mundo contemporâneo. Para parte da humanidade um vilão, para outra parte um herói. Durante a década de 90, ele foi extremamente cuidadoso ao construir uma biografia que pudesse apagar – ou pelo menos ofuscar – o seu papel de protagonista naquela que é conhecida como “a maior catástrofe sanitária do século 20”: as dezenas de milhares de mortes no mundo inteiro por contaminação de amianto (asbesto), uma parte significativa delas ocorrida dentro das fábricas da Eternit suíça, de sua família, ou no raio de alguns quilômetros do seu entorno.

Quase conseguiu.

A família Schmidheiny, uma das mais ricas da Suíça, fez fortuna explorando o amianto a partir do início do século 20. Em 1969, aos 22 anos, Stephan chegou a estagiar na fábrica da Eternit em Osasco, na Grande São Paulo, período em que conheceu alguns dos operários que acabariam morrendo pelas doenças causadas pela fibra. Em 1976, aos 29 anos, assumiu a direção dos negócios da Eternit suíça e, segundo sua versão, decidiu encerrar a produção e vender a empresa ao descobrir que o amianto causava doenças graves, algumas delas fatais. Mas a Eternit deixou as mãos da família somente em 1990. Não foi fechada, mas vendida, deixando para os novos donos a lucrativa produção, assim como o passivo humano e ambiental. Em seu site, o momento é descrito nos seguintes termos: “1988 – início da venda de todas as participações do grupo suíço Eternit, que concluiu no final da década de 1980. As participações foram vendidas para os sucessores legais com todos os direitos e deveres”. O grifo é meu.

É preciso compreender o contexto em que o clã Schmidheiny se retira do negócio responsável por grande parte da sua fortuna durante quase um século. Naquele momento, a Europa já enfrentava o “escândalo do amianto”, com milhares de vítimas. Estima-se que só na França morrerão 100 mil pessoas de doenças relacionadas ao asbesto até 2025. Os primeiros países europeus a vetar a matéria-prima foram a Islândia, em 1983, e a Noruega, em 1984. Progressivamente, o amianto foi sendo eliminado em diversos países até a proibição total pela União Europeia, em 2005. Hoje, o amianto está banido de 66 países, uma lista honrosa da qual o Brasil não faz parte.

Documentos provam que a indústria tinha informações sobre a relação entre amianto e doenças letais desde o início do século 20. Nos anos 30, já havia estudos importantes atestando o potencial mortífero do asbesto, ao ser inalado, causando doenças que levavam anos e até décadas para se manifestar. Uma delas, a asbestose, mata a vítima lentamente por asfixia, ao endurecer o pulmão a ponto de impedir a ação de inspiração/expiração. Milhares de trabalhadores no mundo inteiro morreram asfixiados depois de dedicar sua vida à Eternit suíça e outras empresas de amianto. A maioria deles ainda lutando na justiça por indenização e assistência. No Brasil, empresas como a Eternit criaram um procedimento padrão. Quando os operários estavam perto da morte, quase sem conseguir falar, seus representantes apareciam no hospital oferecendo quantias irrisórias e um documento pronto para assinar, no qual eliminavam a possibilidade de qualquer futura reivindicação judicial pelos familiares. Desesperados, com dor, sem ar, muitas vítimas assinaram os papeis da vergonha.

No primeiro momento, a indústria do amianto negou o caráter tóxico da fibra. Depois, quando se tornou impossível abafar o crescente número de doenças e de mortes de operários, muitos deles por mesoteliomas e outros tipos de câncer relacionados à contaminação por asbesto, assim como pesquisas com resultados cada vez mais contundentes, mudou o discurso e passou a disseminar a ideia do “uso controlado do amianto”. Tentava convencer que, com precauções e proteção, era possível continuar produzindo sem arriscar a vida dos trabalhadores. Para isso gastou – e segue gastando – milhões de dólares para pagar marqueteiros, lobistas e cientistas com a missão de fazer essa ideia circular – e preponderar. O Brasil, país em que o amianto é proibido apenas em seis estados (Rio Grande do Sul, São Paulo, Pernambuco, Rio de Janeiro, Mato Grosso e Minas Gerais), é um exemplo de como a estratégia tem funcionado à custa de vidas humanas, de contaminação ambiental e, em breve, de uma sangria considerável nos cofres públicos da saúde e da previdência.

Ao promover sua saída estratégica dos negócios do amianto, Stephan Schmidheiny passou a executar uma espécie de “lavagem de biografia”. O bilionário suíço cunhou o conceito de “ecoeficiência”, tornando-se um dos expoentes da Rio-92, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, e criou as fundações Fundes e Avina. Esta última, bastante conhecida também no Brasil, financia projetos de redução da pobreza em diversos países. Colecionador e conhecedor de arte, circulou desenvolto na cúpula de museus como o prestigiado Museu de Arte Moderna (MoMA), de Nova York. Como “empreendedor moderno e filantropo” fez conferências em universidades da Ivy League americana, como Yale. Em 2003, criou uma entidade chamada Viva Trust, a qual doou US$ 1 bilhão, para financiar os projetos sociais e ambientais da Avina. Neste ato, anunciou sua retirada do mundo dos negócios, distribuindo um cartão no qual, abaixo do seu nome, estava escrito: “piloto de helicóptero e mergulhador”.

A conversão da biografia, de príncipe do amianto para filantropo socioambiental, parecia ter sido concluída com enorme sucesso. Reportagens laudatórias em revistas internacionais – e também brasileiras – o estampavam na capa ou em páginas nobres. Tudo parecia correr muito bem para Stephan Schmidheiny, como havia ocorrido para muitos antes dele em áreas as mais diversas. Até 13 de fevereiro de 2012. Nesta data, ele foi condenado, pelo Tribunal de Turim, a 16 anos de prisão e ao pagamento de 100 milhões de euros pela morte de milhares de pessoas por doenças relacionadas ao amianto, contaminadas em plantas da Eternit na Itália. O crime foi descrito como “desastre ambiental doloso permanente e omissão dolosa de medidas de segurança para os operários”. Em 3 de junho de 2013, a sentença não só foi confirmada em segunda instância, como foi ampliada de 16 para 18 anos de prisão. Está prevista para 2014 a sentença final, em Roma. O outro réu, o barão belga Jean-Louis Marie Ghislain de Cartier de Marchienne, morreu no ano passado. Durante o julgamento, ao qual Schmidheiny não compareceu, o homem que foi festejado na revista americana Forbes como o “Bill Gates suíço” teve seu nome coroado pela palavra “assassino”.

O comportamento da Eternit foi sendo descrito no tribunal, hora após hora, por homens e mulheres que, ou perderam seus pais, mães, maridos, esposas e filhos por doenças causadas pelo amianto, ou estavam na iminência de perder, eles mesmos, sua própria vida em processos cancerígenos dolorosos antes de o julgamento chegar ao fim. Gente como a italiana Romana Blasotti Pavesi, que perdeu o marido, a irmã, um primo, um sobrinho e, por fim, a filha de mesotelioma causado por amianto. Apenas o marido tinha trabalhado na fábrica. Cidadãos de Casale Monferrato, a cidade dominada por uma planta da Eternit durante quase todo o século 20, relataram o momento em que descobriram que não apenas os operários e seus familiares morriam, mas também pessoas de outras profissões (jornalistas, médicos, professores etc), que nunca haviam manipulado diretamente a fibra, mas tinham sido afetados pela contaminação ambiental.

Na sentença, afirma-se que, em 1976, diante das crescentes notícias sobre a relação entre asbesto e doenças crônicas e fatais, a indústria promoveu uma conferência na Alemanha para discutir estratégias para enfrentar o problema sem deixar de produzir com amianto. Stephan Schmidheiny estava presente neste encontro. Também enfatiza-se que ele participou de ações visando a confundir a opinião pública, ao desqualificar ou lançar dúvidas sobre as pesquisas científicas que comprovavam o efeito nefasto da fibra mineral para a saúde. Por fim, a corte concluiu: “Stephan Schmidheiny estava completamente consciente em 1976 dos estudos epidemiológicos para a relação causal entre aspirar as fibras de amianto e o estabelecimento de doenças”. Após a sentença, a mesma imprensa que por anos louvou o empreendedorismo, a caridade, a visão e o desprendimento do bilionário foi obrigada a recuar.

Ao mirarem a biografia de Stephan Schmidheiny, as vítimas do amianto estão disputando a escrita da história. Mas num momento muito particular. Enquanto a maior parte do mundo desenvolvido já baniu a matéria-prima e lida com o passivo humano e ambiental, parte das potências emergentes, como o próprio Brasil, ainda é bastante permeável ao lobby da indústria, quando não conivente com o adoecimento e a morte de pessoas. O Brasil é hoje o terceiro produtor mundial de amianto, o terceiro exportador e o terceiro usuário de amianto. É interessante perceber que, no Brasil, enquanto o amianto rareia nas regiões mais nobres das grandes cidades, continua amplamente usado em favelas e periferias, aldeias indígenas, comunidades quilombolas e ribeirinhas, e nas casas de pequenos agricultores, inclusive – e talvez especialmente – na Amazônia.

Neste contexto, a disputa narrativa sobre a biografia de Stephan Schmidheiny torna-se estratégica para a luta pelo banimento do amianto. E poderá definir tanto a aceleração de alguns desfechos como a inclusão de novos capítulos numa história em construção. Não há dúvida de que o amianto é um thriller real que poderia dar um filme tão revelador sobre os métodos de sua indústria quanto foi O Informante para o ramo do tabaco. Ou mesmo um filme como Obrigado por fumar, sobre “os lobistas do mal”. Há poucas dúvidas de que passará para a história como um dos maiores escândalos trabalhistas e sanitários do século 20 – e 21. Mas a imagem e o lugar de personagens centrais como Schmidheiny ainda estão em disputa.

Ao empreenderem batalhas articuladas para cassar seus títulos, prêmios e honrarias, as vítimas do amianto desejam impedir que triunfe a narrativa de Schmidheiny, mais bem exposta numa versão antiga de sua biografia, contada em primeira pessoa, mas já substituída em seu site oficial: “A família Schmidheiny sempre vivera discretamente, afastada do olhar público. De repente, me vi nas primeiras páginas dos jornais, ligado aos efeitos nocivos do amianto, os mesmos efeitos contra os quais eu tentava proteger os meus empregados e o grupo. Isso foi muito difícil, não só para mim, como também para minha família e meus amigos. Naquele momento, concluí que era incapaz de calcular por mim mesmo o verdadeiro grau dos riscos envolvidos na fabricação de produtos de cimento-amianto. Nossos assessores achavam que os estudos científicos destinados a provar os efeitos nocivos desse material estavam cheios de contradições. Eu percebia que a falta de um consenso científico e técnico transparente em relação ao amianto e a imprevisibilidade dos seus efeitos impossibilitavam qualquer planejamento ou gestão de risco confiável. Concluí então que essa não era uma perspectiva muito promissora para estar envolvido. Ao mesmo tempo, tomei uma decisão radical. Sem ter a mais mínima ideia de como iríamos implantar a mudança, anunciei publicamente que o grupo interromperia a fabricação de produtos contendo amianto. Posso me lembrar muito bem das palavras de um dos gerentes técnicos depois do meu anúncio: ‘O jovem Schmidheiny está louco! Quer fabricar produtos Eternit sem amianto. É como querer encontrar água seca…’ Tomei a decisão de não utilizar mais amianto baseado nos problemas de saúde e ambientais associados a esse mineral. Mas também tive a impressão de que, em uma época de crescente transparência – bem como de preocupação com os riscos para a saúde – seria impossível desenvolver e manter um negócio bem sucedido baseado no amianto. Tal intuição fez com que eu começasse a considerar seriamente a relação entre os negócios e a sociedade. Foi um período doloroso, mas uma preparação de valor inestimável para minha posterior dedicação a uma posição de liderança em assuntos relacionados aos negócios e sociedade.”

No site atual, este momento é assim resumido na sua biografia, agora contada em terceira pessoa: “O jovem advogado licenciado ingressou na Eternit Suíça quando tinha somente 29 anos de idade, assumiu sua liderança depois de pouco tempo e imediatamente começou a impulsionar a saída do processamento de amianto, que foi considerado um logro pioneiro em nível mundial”.

Esta versão é considerada pelas vítimas e por seus advogados um produto do competente processo de lavagem de sua biografia. “Não vou entrar no mérito de sua vida posterior ou de seu dinamismo como empreendedor. Mas não há sentido purificador nesta venda. Schmidheiny fez uso econômico da Eternit, com frutos econômicos. Não foi uma doação. Ele a vendeu, fazendo com que os produtos de amianto continuassem a ser produzidos pelo novo comprador”, afirma Mauro Menezes, advogado da ABREA. “Não convém ao nosso país manter uma medalha concedida a alguém que posteriormente foi condenado criminalmente por omissão dolosa de proteção à saúde de milhares de pessoas.” Roberto Caldas, também advogado da ABREA – e hoje juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos – afirma: “Uma comenda é um sinal para a sociedade de que aquele indivíduo agraciado realizou um grande serviço ao país. A partir do momento em que se percebe que o indivíduo ‘fugiu’ do que se acreditava, nada mais natural que a honraria seja retirada. Não pode um criminoso continuar ostentando uma honraria como essa e comprometendo a imagem do país”.

No Brasil, a principal protagonista da luta pelo banimento do amianto é a engenheira Fernanda Giannasi. Auditora fiscal do Ministério do Trabalho por 30 anos, ela aposentou-se em agosto para se dedicar em período integral à causa que já lhe rendeu ameaças de morte. “Lutar para retirar a Ordem do Cruzeiro do Sul dada a Schmidheiny é mais uma frente para passar a limpo a história desse crime social ‘quase perfeito’”, afirma. “Essa luta significa a desglamourização de um personagem que foi entronizado pelo movimento ambientalista no início da década de 90 como um guru, mas que faz parte do grande quebra-cabeça que é a extraordinária história desse crime corporativo industrial multinacional, que atravessou todo o século passado quase impune.”

A disputa pela biografia do bilionário suíço não será fácil. A aura de Schmidheiny se mantém em algumas esferas elevadas mesmo após a condenação no Tribunal de Turim. A troca de cartas entre o escritório de advocacia que representa as vítimas italianas e a Universidade de Yale é uma prova. Esta foi a resposta da direção de Yale ao pleito das vítimas: “Yale concedeu a honraria ao senhor Schmidheiny pela sua defesa em prol de um desenvolvimento e crescimento econômico sustentáveis. A decisão de premiá-lo foi tomada por um comitê que levou em conta todo o seu histórico: o de um filantropo que usou sua riqueza para destinar fundos ao crescimento sustentável na América Latina e em todo o resto, um pioneiro defensor internacional na mudança da forma como as empresas encaram a sustentabilidade ambiental e um empresário que herdou e desmantelou um processamento de amianto de décadas. Não há registro de Yale ter revogado alguma vez um título honorífico e nós não estamos considerando este passo no caso do senhor Schmidheiny”.

Christopher Meisenkothen, advogado que representa as vítimas italianas, retrucou: “Uma diminuição real do valor das honrarias de uma instituição ocorre quando o grupo de agraciados é afetado pela inclusão de personagens controversos. Eu gostaria de imaginar que uma instituição como a Universidade de Yale gostaria de manter e proteger a integridade de seus títulos honoríficos, assim como promover os altos padrões éticos com os quais reconhece os contemplados”.

O advogado das vítimas pediu a relação de doações feitas por Schmidheiny à universidade. Numa primeira carta, Yale negou que tenha ocorrido qualquer aporte de recursos. Meisenkothen, então, enviou cópias de materiais de divulgação da própria universidade, nos quais consta uma doação feita pela Fundação Avina à Yale, pouco depois da concessão do título ao bilionário. A direção de Yale desculpou-se, explicando que tinha pesquisado apenas nas “bases digitais” e não nos “arquivos de papel”, razão pela qual acabou por fornecer uma “informação incorreta”. Mas, ainda assim, reiterou sua decisão de não revogar o título. Os familiares das vítimas prometem continuar pressionando a universidade e a opinião pública americana e internacional pela revogação da honraria.

Yale é uma instituição privada. No caso brasileiro é diferente. A Ordem do Cruzeiro do Sul é uma condecoração concedida pelo Estado, um reconhecimento dos serviços prestados por um estrangeiro ao país, envolvendo, portanto, o conjunto da população brasileira. Entre as estratégias planejadas pelas vítimas brasileiras do amianto, além de uma intensa campanha nas redes sociais, está a de que um parlamentar assuma a causa e a medalha seja cassada pelo legislativo. Há pelo menos um precedente tramitando no parlamento: o pedido de retirada da Ordem do Cruzeiro do Sul concedida a Alberto Fujimori, ex-presidente do Peru, hoje condenado por graves violações aos direitos humanos.

A lavagem de biografia não é uma novidade histórica. Poderia apenas ser mais explorada por historiadores. Em geral há um caminho tortuoso e uma fileira de lacunas entre a pessoa de carne, osso, paixões e vilanias e o personagem “limpinho” que vira estátua nas praças de cada cidade. A diferença, do passado para o presente, e em especial do presente com internet, é que essa transição pode não ser completada com o sucesso habitual.

Se antes bastava poder econômico e político para criar uma nova imagem, hoje os obstáculos são muitos. A começar pelo fato de atores, até então sem voz, terem passado a gritar nas redes sociais e a organizar campanhas barulhentas com informações que o dono da biografia até então heroica preferiria apagar. Não gritos vazios, mas ancorados em documentação: as vítimas italianas entregaram à Universidade de Yale uma carta de apoio à sua causa com o nome de mais de 70 renomados cientistas do mundo inteiro, assim como as principais conclusões da Corte de Turim, retiradas de uma sentença com mais de 800 páginas. Conectadas pela tecnologia e articuladas nas redes sociais, as vítimas do amianto prometem enfrentar os marqueteiros e gerenciadores de crise do bilionário suíço e, com pouco dinheiro, mas muitos apoiadores pelo mundo, construir uma narrativa mais complexa para a vida de Stephan Schmidheiny. Disputam a escrita da história não no futuro – mas agora, no presente.

Stephan Schmidheiny não é o único magnata que, depois de uma vida turbulenta no mundo dos negócios, decidiu tornar-se um filantropo. Seja para expiar os pecados anteriores, seja por estratégia de marketing, seja para escapar de futuras condenações, seja por – improvável, mas não impossível – real arrependimento. Seja por tudo isso e mais alguma coisa. O mundo atual é movido por alguns destes homens que investiram ou doaram fortunas obtidas de forma questionável, para dizer o mínimo, em fundações que financiam causas “certas”. Como a própria Fundação Avina, de Schmidheiny, que está longe de ser a única.

Essa realidade traz alguns dilemas éticos a pessoas, até prova em contrário idôneas e bem intencionadas, que se beneficiam deste apoio para colocar em curso ações importantes de redução da pobreza, proteção socioambiental ou mesmo de democratização da informação. Parece uma equação simples, mas está longe de ser. Por um lado, o dinheiro obtido de forma questionável, ou mesmo ilícita ou até criminosa, é usado para projetos de importância comprovada. Por outro, aqueles que são financiados por este dinheiro ajudam a promover e a legitimar a lavagem da biografia do doador, ao colaborar para passar uma borracha sobre a história. Movimentos como o das vítimas do amianto, ao mirar na imagem de filantropo de Stephan Shmidheiny, abrem uma discussão espinhosa que poucos estão interessados em levar adiante. Mas que talvez fosse preciso ter a coragem de enfrentá-la, em nome da transparência, mas também porque ampliar a complexidade dos novos dilemas nos amadurece como sociedade.

Vilão ou herói? Stephan Schmidheiny possivelmente não é nem um nem outro, talvez ambos em momentos e plateias distintas. Entre os seus erros talvez esteja o de acreditar que poderia se absolutizar como um herói, o que, de fato, quase conseguiu. Mas a Eternit fabricou fantasmas demais, numa época conectada como nenhuma outra antes, para que isso se tornasse possível. Estes fantasmas falam agora pela boca de seus familiares ainda vivos. E falam em rede, para milhões.

Como ser humano, nem herói nem vilão, a tragédia de Stephan Schmidheiny é fascinante. Assumir os atos controversos de sua família por quase um século seria o mesmo que promover a destruição da memória familiar, o que não é fácil para nenhuma pessoa, rico ou pobre. Faz sentido acreditar que a única escolha ética possível teria sido revelar e admitir a parte sombria da história da Eternit, responsabilizar-se pelo passivo humano e ambiental, indenizando e apoiando os trabalhadores, assim como promovendo a descontaminação das cidades onde existiam fábricas. E doar o restante do dinheiro para a pesquisa de tratamento e cura para as doenças do amianto. Não por medo de ser preso, embora ele já tenha dito à imprensa que não ficará “preso em uma cadeia italiana”, mas porque é o moralmente correto, ainda que imensamente duro.

Mas esse caminho não é o dos heróis, só o dos homens. Estes precisam conviver com seus erros e covardias, quando não com as mãos manchadas de sangue, muitas vezes em praça pública. O caminho dos homens não rende títulos em Yale nem medalhas do Itamaraty nem lugar de honra em conferências mundiais de meio ambiente nem destaque em museus badalados de arte. Stephan Schmidheiny preferiu vender a empresa, transferir o passivo para outras mãos e se concentrar em investir na construção de uma imagem de benemérito. Ele, que segundo o Tribunal de Turim foi conivente com tanto mal, quis talvez demais: um lugar na história como herói. E então suas vítimas apareceram para lembrá-lo de que é um vilão – e de que os cadáveres permanecerão insepultos enquanto não houver justiça.

Em 19 de dezembro de 2003, João Francisco Grabenweger, operário da Eternit de Osasco, na Grande São Paulo, que, por falar alemão, foi uma espécie de intérprete e cicerone do jovem Schmidheiny em seu estágio na fábrica brasileira, escreveu uma carta ao bilionário. A seguir, um trecho: “Permita-me perguntar-lhe, senhor, você já leu algum artigo sobre as vítimas dos campos de concentração nazistas? Aquelas que sobreviveram recebem compensação financeira substancial com todos os direitos possíveis. Quando nós, ex-empregados da Eternit, fomos mantidos completamente ignorantes do fato de que trabalhávamos em um campo de concentração de amianto. Sendo bons funcionários, trabalhamos com o melhor que tínhamos, com completo orgulho e dedicação, para criar o império de cimento de amianto da família Schmidheiny. Mas o que recebemos da ‘Mãe Eternit’? O que adquirimos foi uma bomba com detonador de ação retardada que havia sido implantada em nossos tórax. (…) Peço-lhe que nos ajude a garantir a justiça com a qual temos sonhado para aqueles que deram suas vidas por você, senhor, e por sua família, e seus negócios.”

João Francisco Grabenweger morreu de asbestose, em dolorosa asfixia, em 16 de janeiro de 2008. Nunca recebeu resposta. A Eternit, em outras mãos, lhe ofereceu US$ 27 mil para abandonar seu processo judicial por indenização.

De algum modo sua carta, anos antes do julgamento no Tribunal de Turim, lembrava a Stephan Schmidheiny que, do destino humano, nem aqueles que se acreditam deuses escapam.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua e A Menina Quebrada e do romance Uma Duas. Email: elianebrum@uol.com.br. Twitter: @brumelianebrum