Seis meses depois, ‘cracolândia’ ainda é a ‘cracolândia’
Os números apresentados pela Secretaria de Segurança Pública são eloquentes: quase 83 mil abordagens, 489 prisões, mais de 6 mil encaminhamentos para serviços de saúde e 775 internações, além de 66 quilos de drogas apreendidos. Nada disso, porém, conseguiu por fim à Cracolândia, no centro de São Paulo, conforme previa o projeto de “limpeza” da área iniciado em janeiro pelo governo Geraldo Alckmin (PSDB), em parceria com a administração Gilberto Kassab (PSD).
Seis meses depois das ações repressivas da PM, a região, que fica entre o Campos Elíseos e o bairro da Luz, continua concentrando grande número de dependentes de crack. E a presença da polícia, nas ruas, ainda é maior do que a dos agentes de saúde.
Em janeiro, a denominada Operação Sufoco prendeu 296 pessoas e internou 195. A prefeitura demoliu imóveis condenados, que seriam ocupados pelo tráfico de drogas. A ideia era “limpar” a região para facilitar o desenvolvimento do polêmico projeto Nova Luz, que favorece a especulação imobiliária e sofre vários questionamentos na Justiça por ter desapropriado um bairro inteiro em benefício da iniciativa privada.
Originalmente, a Operação Integrada Centro Legal tinha três fases. A primeira consistia em quebrar a logística do tráfico, para, segundo o governo do estado, criar condições para a intervenção da saúde, com uma presença intensa da polícia por 30 dias.
A segunda fase previa ações sociais e de saúde aos usuários, com abordagens e encaminhamento. Agora, seis meses depois, seria o momento da terceira fase, já sem a presença de usuários – mas isso parece estar longe de acontecer.
As cenas chocantes de policiais acuando hordas de viciados, mostradas pelas TVs em janeiro, continuam acontecendo. PM e a Guarda Civil Metropolitana (GCM) não interromperam a chamada romaria do crack, que consiste em mover os usuários de uma rua para outra, forçando-os a circular no bairro, como se fossem uma manada de bois. A comparação é feita por uma usuária, cujo segundo nome é Laura.
Só queria que a polícia deixasse a gente em paz, disse ela. Eles nos descem pra lá, sobem pra cá, tiram a gente dali e voltam pra cá. Não podemos ficar em paz em lugar algum. Aqui a gente está por enquanto, porque já já eles vêm e nos tiram.
A reportagem presenciou a GCM expulsando um grupo de usuários de um quarteirão da rua Helvétia. Antes de a polícia chegar, alguns deles gritam, em aviso aos demais: Oh a loira passando de caminhão, um código no qual a ‘loira’ significa a polícia. A GCM coordenava o fluxo de pessoas. Em seguida, passavam agentes da Limpeza Urbana, com um caminhão-cisterna varrendo a rua com água. Minutos depois, o mesmo grupo se encontrava concentrado em outro quarteirão, na própria Helvétia, a 100 metros dali.
Uso crack desde 1980, quando surgiu o crack, conta Laura, que não quis revelar a idade. Foi a pior coisa que eu fiz na vida. Isso é horrível, é avassalador, é a pior coisa que pode acontecer com um ser humano. Você sabe o que é ficar 24 horas só dependendo daquilo? O craque não te deixa dormir, não te deixa comer, você parece um zumbi.
Quando a operação começou em janeiro, ela conseguiu escapar, indo para os bairros vizinhos. Laura não reconhece qualquer aspecto positivo da ação da PM. Eles xingam a gente, chamam de vagabunda e de escória e batem na gente. Todo mundo que mora aqui é amigo, nós convivemos bem. O único problema é a PM. Eu sei que isso é terrível, que ninguém quer ter noia na porta de casa, mas infelizmente acontece, em algum lugar a gente tem que ficar, disse.
Questionada se não tinha interesse em se internar e se não pensou que a ação da polícia poderia ser uma boa oportunidade para tanto, respondeu: Todos os meus conhecidos que foram internados em janeiro voltaram. Eu já fui internada dez vezes, e eu voltei. Laura poderia ter mudado para outros bairros, como o Glicério e o entorno do Elevado Presidente Costa e Silva, o Minhocão, como outros usuários fizeram após a operação, mas disse que se acostumou com a Cracolândia. Eu tenho família, mas, quando eu surto, eu sumo e venho pra cá, por dois ou três dias, depois eu volto pra minha casa e fico meses lá.
A operação policial foi alvo de denúncias de violação aos direitos humanos feitas pela Conectas e outras três entidades ao Conselho de Direitos Humanos das Organizações Unidas. Em junho, o Ministério Público de São Paulo, que considerou a ofensiva um mero exercício higienista, ajuizou ação pedindo condenação do governo do estado e indenização às pessoas submetidas à operação policial, por danos morais, no valor mínimo de R$ 40 milhões.
Os promotores pediram a concessão de uma liminar que impedisse a PM de fazer a romaria do crack. A operação mostrou-se totalmente ineficiente, disseram os promotores Justiça Arthur Pinto Filho, Eduardo Ferreira Valério, Luciana Bergamo Tchorbadjiane e Maurício Antonio Ribeiro, em nota divulgada pelo MP.
Eles afirmaram que a “romaria” dificulta o trabalho de agentes de saúde no local e de entidades que realizam trabalhos sociais com os usuários. Ela gerou graves violações aos direitos humanos, ofendeu princípios do Estado Democrático de Direito e desperdiçou vultosos recursos públicos, sustentaram eles, na ação.
A quantidade de usuários diminuiu, na região, de acordo com os comerciantes que ali trabalham. A maioria deles, contudo, acredita que a região continua a ser um “antro” do crack. Dermivaldo Pereira tem comércio na região desde 1970. Está a mesma coisa, oh eles ali, contou, apontando para usuários na rua de sua loja de conveniência.
Everaldo Siva Ribeiro, que vive há 30 anos no bairro, aprova a presença da polícia. Não tem mais roubos, e não tem mais noia na minha rua, disse. Ele afirma, entretanto, que a Cracolândia ainda existe e que os usuários continuam presentes na região.
Outros comerciantes que preferiram não ser identificados são avessos à operação da polícia. Eles [a PM e a GCM] acham que só porque a gente mora aqui é traficante, disse um deles. A ação da polícia é abusiva, e as abordagens aos moradores é excessiva e agressiva, segundo eles.
Em janeiro, a prefeitura afirmou que o comércio da região sofria com a presença dos dependentes e as lojas estavam sendo fechadas. Pereira, entretanto, conta que alguns usuários são clientes de seu estabelecimento e que não há qualquer desavença com eles.
Por: Estevan Muniz, da Rede Brasil Atual